sábado, 5 de março de 2011

HOMEM E NATUREZA: Uma relação conflituosa

Hodiernamente, vivemos uma tendência na esfera científica que se caracteriza pela aproximação entre o objeto de estudo da ciência e o sujeito produtor de ciência. Observamos que esse vínculo é cada vez maior e mais sólido. Nesse sentido, procuramos, aqui, encetar uma discussão relativamente à indissociabilidade entre sujeito (homem) e objeto (natureza). A problemática concernente à relação sujeito-objeto, no âmbito da investigação científica, e mais geralmente, no contexto da Epistemologia, revela-se central não só porque coloca em xeque os fundamentos do conhecimento científico, isto é, não tanto porque envolve aspectos teóricos, mas, sobretudo, porque envolve questões atinentes ao modo como o homem interage com o mundo de um ponto de vista prático. Daí a discussão atual a esse respeito, cujo princípio norteador reside no conceito de complexidade, se impor de maneira tão firme, visto que se trata do ser e do dever ser do homem tendo em vista a preservação de sua morada.

A sociedade na qual vivemos hodiernamente é "resultado da complexidade dos processos da natureza". Processos naturais estes que afetam tanto o mundo físico quanto o mundo propriamente humano, uma vez que o homem é parte da natureza. No entanto, na medida mesma em que participa do mundo natural, o ser humano o faz intervindo de maneira ativa no curso da Natureza, sendo sua atuação, por conseguinte, decisiva para delimitar o caráter complexo que hoje toma forma os processos naturais. Portanto, vale notar que, se os sistemas físicos e os sistemas sócio-econômicos, políticos e culturais se tornaram mais complexos, isso não significa que tais mudanças tenham acontecido naturalmente no sentido de se pensar que o mundo globalizado é produto de uma lei natural, do ordenamento determinado da natureza. Se fosse assim, teríamos que aceitar que tudo que ocorre no mundo obedece a uma fatal necessidade; e quanto a nós, não passaríamos de meras peças integrando a engrenagem do destino universal.

É preciso reconhecer que somos sujeitos e, como tais, agimos na e com a Natureza. Ora, se por um lado, somos seres naturais e vivemos na Natureza, submetidos, portanto, aos limites por ela impostos, adequando-nos às suas determinações; por outro, temos a potência e a liberdade de construirmos um mundo radicalmente distinto do mundo natural; assim, ultrapassamos os limites da esfera meramente animal e nos tornamos humanos ao construirmos um universo que leva nossa marca (cultura, história, política, sociedade). Nessa perspectiva, nossa ação na e com a natureza se dá no sentido de transformá-la, ajustando-a ao nosso modo próprio de ser. Dir-se-ia que o homem desterrou-se de sua morada e erigiu um lar próprio. No entanto, essa morada nova nunca esteve para além do mundo natural, isto é, o homem continua aclimatado no seu universo originário; ele permanece na Natureza interagindo com ela. Claro que, em função do desterro, essa interação nem sempre - ou quase nunca - se revelou sadia. Mas qual o preço a pagar por tal comportamento insubmisso? Qual o ônus que a Natureza cobrará pela ingratidão do seu filho pródigo? Perguntas que talvez ainda não comportem respostas definitivas. Ela, a Natureza, poderá nos perdoar ao tempo em que nós nos decidirmos pelo arrependimento e resolvermos "voltar para casa". Ocorre que talvez não seja uma questão de perdão e arrependimento, mas de justiça. E aí pagaremos pelo erro cometido, pois é justo dá a cada um o que lhe compete. E, nesse caso, é inevitável que o homem, no mínimo, reparará pelos "crimes cometidos" com a natureza. Mas por que seria inevitável? Porque simplesmente, considerando a teoria da complexidade, "os processos são irreversíveis". "A questão da irreversibilidade significa dizer, portanto, que o tempo existe na natureza - não sendo uma mera construção do pensamento humano - já que agora é possível cientificamente distinguir entre o passado e o futuro" (ELIA, Marcos. Metamorfoses da Ciência: uma breve história do movimento, p. 7).

É preciso reconhecer que, com o desenvolvimento acelerado das tecnologias da informação e da comunicação, redefiniu-se nossa percepção do espaço-tempo e - por que não? - o horizonte de ação do próprio homem foi redimensionado (do mundo real e natural para o universo virtual e artificial). Um tal contexto é concebido como que caracterizado pela complexidade: dos elementos , dos processos, das relações, dos resultados, etc. Compreender esse movimento é fundamental, mas requer que não sejamos ingênuos, porque refletir sobre ele nada mais é do que entrar na dinâmica complexa do jogo. "A teoria da complexidade é, assim, apenas umas das consequências na sociedade atual, que se reflete em uma metamorfose do pensamento filosófico e científico, desde os tempos socráticos até os dias de hoje" (MÓDULO DA DISCIPLINA "SEMINÁRIO INFORMÁTICA E SOCIEDADE", UNIDADE I, do Curso de Especialização “Tecnologias em Educação”, CCEAD/PUC-RIO, 2009-2010, p. 2).

Tomando a Cultura Ocidental - e, na mesma linha, a Ciência - como tributárias do pensamento grego, cujo traço é o logos, a ordem, a racionalidade transcendente do homem e imanente do mundo, podemos afirmar que, desde os gregos até os dias atuais, a relação sujeito-objeto vem se metamorfoseando: ora prevalecendo um elemento em detrimento do outro, ora se complementando, ora se fundindo. Mas antes de entrarmos nessa discussão, gostaria de citar umas luminosas palavras de Dostoiévski. Assim escreve o romancista russo: "tudo está ao alcance do homem e tudo lhe escapa, em virtude de sua covardia (...). Coisa curiosa a observar-se: que é que os homens temem acima de tudo? - O que for capaz de mudar-lhes os hábitos: eis o que mais o apavora (...)" (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 12). Espinosa, já no século XVII, dizia que a esperança e o medo são as causas das nossas superstições. "O medo", afirmou o filósofo, "é a causa que origina, conserva e alimenta a superstição" (ESPINOSA, 2003, p. 6).

Covardia, pavor, medo e superstição a partir dos quais o homem constrói seu mundo de regularidades, de homogeneidades, de identidades, buscando fugir do insólito, do heterogêneo, do transitório – “A ciência parece ser uma forma de escapar da realidade, fugir de um mundo caracterizado pelo egoísmo e pelo conflito” (PRIGOGINE, 2010, p.7). Diante das potências da natureza, a atitude originária do ser humano é de impotência, espanto e temor. Para camuflar essa sua fraqueza, ele nega sua feição natural. Implementa para a instabilidade do mundo uma ordem e uma estabilidade fictícias; para se sentir seguro instaura a identidade em detrimento da diferença, postula a unidade como síntese do diverso, cria o movimento contínuo, as relações regulares de causa e efeito entre os fenômenos, a circularidade ou a linearidade do tempo, inventa leis e as projeta na natureza, regula as próprias relações que se operam entre os homens. Em suma, o homem institui e edifica seu “lar humano” (religião, história, ciência, arte, política, etc) quando transcende seu caráter meramente natural. Doravante, poder-se-ia pensar que "tudo está ao seu alcance". Ecoa aí nas palavras de Dostoiévski a frase do arquiteto e humanista florentino Leon Battisti Alberti que dizia: “os homens podem fazer tudo, se quiserem” (citado por PRIGOGINE, 2010, p. 3). Ambos fazem eco ao dito atribuído a Protágoras, sofista grego contemporâneo de Sócrates, que afirmava: “o homem é a medida de todas as coisas”. Nessa direção, a animalidade concede espaço para o pleno desenvolvimento da racionalidade. Mera ilusão! Pois tal medida só é possível num mundo plasmado pela lógica, pela harmonia, pela ordem. Na verdade, tudo lhe escapa, porque seu mundo está assentado sobre um "fundo falso", sobre o medo e a covardia: medo do efêmero, do caótico, do ilógico e do irracional que vigora na natureza. De todo modo, é essa atitude antinatural que constitui o ser próprio do humano, é o emergir da racionalidade que o transforma em SUJEITO. E se é assim, o outro que não seja sujeito é sempre OBJETO. O poder e a segurança do homem, enquanto pura subjetividade, pura racionalidade, fundamentam-se no temor do objeto [natureza]. Isso porque a natureza é imprevisível, imersa na temporalidade e, por isso mesmo, irreversível. Assim, para garantir sua segurança e seu poder, o sujeito procura anular ou, no mais das vezes, dominar o objeto, de modo que este se constitua ao modo de ser próprio daquele.

Após essa digressão, consideremos os traços da relação sujeito-objeto de um ponto de vista estritamente epistemológico: 1. o sujeito pode ser determinado pelo objeto, e, portanto, nesse caso, conhecimento seria sinônimo de contemplação, descrição; 2. numa outra perspectiva, o objeto é determinado pelo sujeito [sintomático da ciência moderna, isto é, da ciência que se desenvolveu a partir do Séc. XVII – “Com efeito”, assinala Prigogine, “a palavra ‘ciência’ não foi usada com seu sentido atual antes do século XVII” (PRIGOGINE, 2010, p. 2)]. Nesse contexto, não é a natureza quem se mostra ao homem (sujeito do conhecimento), mas é este quem aplica àquela suas categorias subjetivas, reconstruindo (conhecendo) o objeto ao impor a ele tais as estruturas categoriais; aqui, o conhecimento poderia ser concebido como representação, visto que o objeto externo (diverso) apresenta-se às estruturas internas do sujeito, cuja operação se processa no sentido de reconstituir a unidade, ou melhor, no sentido de representá-lo enquanto síntese unificada do múltiplo; 3. também é possível assinalar uma cisão no sujeito, quando, então, este deixa ver sua face objetiva (penso aqui no advento das ciências humanas, quando o homem é ao mesmo tempo sujeito e objeto do conhecimento): a relação pauta-se, nesse contexto, por uma espécie de reconciliação do sujeito com seu duplo; no entanto, ainda há uma diferença, uma separação entre subjetividade e objetividade, pois basta lembrar do problema da fundamentação das ciências humanas – a questão é: “em que medida o conhecimento das chamadas ciências humanas, que tem como objeto o próprio sujeito humano enraizado em sua cultura, pode ser considerado um conhecimento objetivo?” Ora, não faria sentido perguntar pela objetividade das ciências humanas se não houvesse separação entre sujeito e objeto no plano epistemológico. 4. Por fim, pode haver uma espécie de fusão entre os dois elementos, isto é, sujeito e objeto não seriam mais dois elementos distintos, mas estariam fundidos numa só e mesma esfera.

A "fusão" - e não confusão - entre sujeito e objeto emerge a partir dos estudos de Claude Shannon, Jacque Monod e Ilya Prigogine (Cf. ELIA, 2010, pp. 8 e ss). Segundo Prigogine, “a ciência é a expressão de uma cultura” (PRIGOGINE, 2010, P. 2). Isso significa que a ciência é produto de um ser – o homem – imerso no fluxo mutável e dinâmico do mundo, pois o homem não é senão “ser-no-mundo”. Daí intervir na economia do conhecimento e da ciência elementos até então estranhos à pureza do saber científico: a paixão, o inconsciente, o irracional, a diferença. Longe de ser alguém que fica a observar estrelas do alto de uma torre, quer dizer, de um observatório, ou alguém que lida com a descrição do código genético de uma determinada bactéria na solidão do laboratório, ou ainda alguém que busca fórmulas para descrever a estrutura dos buracos-negros isolado numa sala de um Instituto de Pesquisas qualquer. Enfim, longe de isolar-se, o cientista faz parte da cultura, uma vez que ele e sua pesquisa são afetados pela política, pela economia, pelas instabilidades familiares do homem-cientista, pelas suas crenças, opiniões, pela sua formação, pelos seus medos, anseios e paixões. Mais ainda: é esse conjunto de fatores que determina a realidade da própria natureza, portanto, delimita o objeto da investigação científica. Se as questões da realidade da natureza são inseparáveis das questões relativas à condição humana (Cf. PRIGOGINE, 2010, p. 2), então, a ciência – esse diálogo do homem com a natureza – tem sempre a ver com a existência e a conservação da vida do homem. Sendo assim, sujeito e objeto, homem e natureza estão no mesmo barco e, por conseguinte, as consequências da relação entre um e outro atingem diretamente os destinos de ambos. A vida humana se aperfeiçoou com o desenvolvimento científico e tecnológico, aperfeiçoamento que se pautou numa relação de dominação do objeto (portanto, de si mesmo, tendo em vista a identidade sujeito-objeto). O esgotamento da natureza implica na iminente destruição da própria existência humana. Talvez a abordagem da Teoria da Complexidade intente ressalta justamente o fato de que a instabilidade, a incerteza, o caos, o conflito, a irracionalidade são marcas da nossa finitude e que, portanto, estabilidade, eternidade, harmonia, certeza são construtos da nossa racionalidade frágil e incapaz de enfrentar o drama do mundo. O mundo e o tempo não são ilusões como apregoavam Popper ou Bergson (Cf. PRIGOGINE, 2010, p. 9). O trágico é que o tempo existe e os acontecimentos são irreversíveis. Estamos condenados a ser livres e, nesse sentido, nossas escolhas sobre o que fazemos de nós, do mundo, do nosso tempo, são de nossa inteira responsabilidade. Somos responsáveis pela nossa existência atual e futura e pela existência atual e futura da natureza, pois homem e natureza estão entrelaçados, indissociavelmente ligados.



REFERÊNCIAS:

  1. CONTEÚDO DO MÓDULO DA DISCIPLINA "SEMINÁRIO INFORMÁTICA E SOCIEDADE", UNIDADE I, do Curso de Especialização “Tecnologias em Educação”, CCEAD/PUC-RIO, 2009-2010.
  2. ELIA, Marcos. Metamorfoses da Ciência: uma breve história do movimento. Texto complementar da Disciplina "Seminário: Informática e Sociedade", Unidade I, do Curso de Especialização “Tecnologias em Educação”, CCEAD/PUC-RIO, 2009-2010.
  3. PRIGOGINE, Ilya. Ciência, Razão e Paixão. Texto complementar da Disciplina "Seminário: Informática e Sociedade", Unidade I, do Curso de Especialização “Tecnologias em Educação”, CCEAD/PUC-RIO, 2009-2010.
  4. DOSTOIÉVSKI, Fiodor.Crime e Castigo [Parte I]. Trad. Rosário Fusco. São Paulo: Abril, 2010. ("Coleção clássicos” - Vol. I).
  5. ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teológico-Político. Trad. Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, 2003.